sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Diário do Passado

por Olavo de Carvalho
Ao passar pela malha seletiva da mídia as ações dos agentes da Nova Ordem Mundial se tornam secretas muitas vezes não por ocultação premeditada, mas pelo simples fato de que não se enquadram nas categorias descritivas aceitas pelos órgãos midiáticos.
Praticamente toda a linguagem do jornalismo político em circulação hoje em dia foi criada para descrever um mundo que não existe mais – o mundo do Pós-Guerra . As notícias já não podem refletir os fatos porque são pensadas e escritas segundo esquemas descritivos estreitos demais para a situação atual. As mudanças ocorridas ao longo das últimas cinco décadas no quadro internacional são tão gigantescas que escapam ao horizonte de visão do jornalismo – daí que os fatos mais importantes fiquem fora do noticiário ou recebam cobertura irrisória, enquanto futilidades merecem atenção desproporcional. As conseqüências disso para a alma popular são devastadoras, principalmente porque aí se introduz um segundo fator complicante: como já não existe propriamente cultura popular e a produção da indústria cultural atropela a criatividade espontânea do povo, o resultado é que a mídia se torna a fornecedora única dos símbolos e valores com que o cidadão comum se explica a si mesmo e enquadra, como pode, a sua experiência pessoal num esboço de visão geral do mundo.
A força com que a mídia influencia a própria estruturação das personalidades individuais e das relações pessoais é hoje imensurável. Isso quer dizer que, se essa mídia se aliena da realidade, todos se alienam com ela. Cada um sente na sua própria vida diária os efeitos diretos de profundas transformações globais, mas, como estas não aparecem no debate público, ou aparecem deformadas por estereótipos, a equação psicológica que se estabelece é a seguinte: por mais que o cidadão tente amoldar sua visão da realidade ao recorte deformante, buscando uma falsa sensação de segurança no ajustamento à pseudo-realidade legitimada pelo consenso midiático, setores inteiros da sua experiência pessoal, familiar e grupal permanecem encobertos e inexpressáveis, latejando no escuro como infecções não diagnosticadas. O sentimento de desajuste externo e insegurança interna, que era próprio da adolescência, espalha-se por todas as faixas etárias: não há mais pessoas maduras, todos são teenagers vacilantes, incapazes de uma decisão firme, de um raciocínio conclusivo.
Dois documentos, a meu ver, ilustram bem o esquema interpretativo que partir do fim da II Guerra foi adotado mais ou menos uniformemente por toda a mídia do Ocidente para a descrição da política mundial: o livro de Hans J. Morgenthau, Politics Among Nations: The Struggle for Power and Peace , publicado em 1948 pela Alfred A. Knopf, e a Carta da ONU , assinada em São Francisco em 25 de junho de 1945. O primeiro tornou-se a bíblia do Departamento de Estado americano e, por isso mesmo, o código geral com que os políticos e os formadores de opinião nos outros países interpretavam as ações e palavras do governo de Washington, automaticamente expressando nos termos desse mesmo código as suas posições – e as de seus respectivos governos – com relação à política americana e, no fim das contas, a tudo o mais.
A Doutrina Morgenthau , como veio a ser chamada, é complexa, mas duas de suas características interessam de maneira mais direta ao que estou tentando dizer aqui: 1º . Ela explicava as ações desenroladas no cenário internacional em função de interesses objetivos, racionalmente formulados e identificáveis. 2º . Embora reconhecendo que os Estados nacionais poderiam no futuro dissolver-se em unidades políticas maiores, ela os tratava como agentes principais do processo político mundial (daí o título do livro). As conseqüências imediatas desse enfoque eram: a noção de interesse nacional tornava-se o conceito descritivo fundamental e os agentes supranacionais sem natureza estatal desapareciam do cenário: suas ações tornavam-se invisíveis ou tinham de ser explicadas, bastante artificialmente, como expressões camufladas de interesses nacionais.
Na orientação da política americana, externa e interna, as limitações que daí decorreram foram – e continuam sendo – catastróficas: 1ª . No combate ao comunismo, todos os esforços do governo americano limitaram-se à busca de agentes diretamente controlados pelo governo soviético. A New Left , sem ligações formais com o Partido Comunista da URSS, mas sob certos aspectos mais virulenta do que qualquer agente soviético, não só saiu vitoriosa da guerra do Vietnã, mas impôs a quase toda a população americana os novos padrões de cultura politicamente corretos que hoje bloqueiam qualquer iniciativa séria contra os inimigos internos e externos do país. 2ª . Até hoje o governo americano está travado por uma autocensura, que o impede de reconhecer em voz alta a realidade da guerra de civilizações , tendo de explicar suas ações defensivas mediante o subterfúgio metonímico da guerra contra o terrorismo , ao mesmo tempo que fortalece o inimigo islâmico interno no campo da guerra cultural e vai podando as raízes cristãs de onde a sociedade americana extrai toda a sua força de resistência. 3ª . A luta de vida e morte entre o interesse nacional americano e os grupos globalistas que tentam subjugar a nação aos organismos internacionais é assunto proibido em debates eleitorais (v. o parágrafo final do artigo Uma nova fachada do Foro de São Paulo , DC, 9 de junho de 2008, http://www.olavodecarvalho.org/semana/080609dc.html ). Entre nós, a adoção do conceito de interesse nacional como um fetiche explicativo pela Escola Superior de Guerra faz com que até hoje muitos analistas militares brasileiros sejam incapazes de entender o esquema de dominação globalista senão como instrumento das grandes nações – o que quer dizer, em última análise, dos EUA. Esses erros de perspectiva são retroalimentados pela mídia mundial, que desde os anos 40 adotou informalmente a doutrina do Departamento de Estado como chave descritiva da política internacional.
Não é preciso examinar uma infinidade de jornais e noticiários de rádio e TV para perceber que, embora tagarelem obsessivamente sobre globalização , os jornalistas em geral só enxergam a distribuição de poder no mundo através da sua manifestação visível na forma de Estados nacionais. A religião, por exemplo, continua sendo a seus olhos uma força cultural extrapolítica, que só resvala na política por acidente ou por submissão perversa de seus altos fins originários aos propósitos de algum Estado nacional ou organização terrorista. Eles não podem, por isso, entender o Islã, que é por essência e origem um projeto de Estado mundial, mas que a seus olhos é apenas uma “religião”, capaz de amoldar-se pacificamente à ordem política dos Estados não-islâmicos. Muito menos podem compreender o fenômeno do metacapitalismo ( http://www.olavodecarvalho.org/semana/040617jt.htm e http://www.olavodecarvalho..org/textos/debate_usp_4.htm ).
O segundo documento a que me referi, a Carta da ONU , criou o código de valores que dá substância moral ao retrato do mundo estampado na mídia. Se a mecânica desse mundo é descrita como um jogo de interesses nacionais, seu drama humano é equacionado em termos de paz, direitos humanos, tolerância, progresso econômico e social, segurança internacional, cooperação humanitária, etc., dando vivacidade, movimento e verossimilhança ao quadro da competição entre nações e camuflando automaticamente os esquemas de poder supranacionais, dos quais a própria ONU é hoje um dos instrumentos mais úteis e contundentes.
Se, como foi dito acima, as pessoas sentem na sua vida diária os efeitos das transformações globais sem poder sequer expressar em palavras a ligação entre sua experiência imediata e o cenário maior da História, isso se deve sobretudo ao fato de que os agentes que originaram esses processos permanecem desconhecidos da multidão: as mudanças de valores, de leis, de critérios, que afetam profundamente o destino e até a psicologia íntima de milhões de criaturas desabam sobre a população como se tivessem vindo do céu ou resultassem de fatalidades históricas impessoais. Não podendo ser rastreadas até nenhum agente nacional-estatal, tornam-se ações sem sujeito, misteriosas como decretos da Providência .
No entanto, a harmonia simultânea com que se lançam em todo o planeta campanhas destinadas a mudar radicalmente os hábitos e valores da população, forçando-a a respeitar o que abomina e a abominar o que respeitava até à véspera, basta para mostrar, mesmo a quem nada saiba de origem concreta desses empreendimentos, que essa origem existe e reside em agentes humanos de carne e osso poderosos, organizados e perseverantes. Esses agentes não são secretos, são apenas discretos, embora muitos, bastante famosos até, alardeiem seus motivos e suas ações em livros e conferências. Ao passar pela malha seletiva da mídia, suas ações se tornam secretas, no mais das vezes não por ocultação premeditada, mas pelo simples fato de que não se enquadram nas categorias descritivas aí reconhecidas.
Notas:
Publicado pelo Diário do Comércio em 08/08/2008
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